1. Por que (re/ex)istimos?
“Nós estamos vivendo um momento no nosso Planeta que suspende a todos nós do nosso estado cotidiano. E não podemos operar no automático. Cada um de nós acordou nesta manhã com a experiência de um repouso e uma recepção de um dia novo que nos aparece. Nós não podemos viver no automático.”
– Ailton Krenak, Livro Caminho para Cultura do Bem Viver
Fortunas estão sendo construídas enquanto a magia da ilha está sendo destruída. Este é o trágico e revoltante retrato da Florianópolis atual. Nossas águas poluídas e nossas praias e dunas soterradas por lama e esgoto. Restingas dilaceradas por concreto nas planícies do sul, Mata Atlântica e seus Garapuvus decepados por motosserras para loteamento no Córrego Grande, a Lagoa da Conceição ferida de morte pelo esgoto e famílias sendo despejadas no Maciço do Morro da Cruz.
O fato é que a ilha não aguenta mais negligência, inações, omissões e tanto concreto sobre as suas costas e encostas. Se hoje os habitantes de Florianópolis sofrem com a estiagem ou com as chuvas volumosas, cada vez mais intensas e frequentes, é por causa desta monocultura do pensamento e sua visão limitada de “progresso” propagandeada e implementada ao longo de tantos anos: toneladas de concreto, “asfaltaço” sem sistemas de drenagem ou qualquer cuidado com bueiros e bocas de lobo, construções em cima de áreas de preservação ambiental e a ausência de sistemas de saneamento básico inteligentes. E este cenário vai piorar. No sul da ilha, já há sinais de que a cidade está sendo afetada pela emergência climática.
Alinhado com a política nacional bolsonarista de desmonte da legislação ambiental, o prefeito Gean colocou a cidade à venda e está “passando a boiada”, ou, melhor, a patrola. Será que é para pagar dívidas de campanhas e usar como moeda de troca, para se candidatar a Governador e lotear todo o Estado? O fato é que, enquanto a terra é comida por retroescavadeiras, os bolsos que engordam são dos setores da especulação imobiliária, do turismo predatório e da mídia que propagandeia esta visão da cidade como um imenso beach clube para os ricos.
Gean avança com o projeto da faraônica “Megalo-Marina”, que, se concretizado, terá imenso impacto negativo na questão ambiental, paisagística, cultural, econômica e social da cidade, intensificando o já caótico trânsito de umas das piores mobilidades urbanas do mundo e prejudicando diretamente centenas de famílias que dependem da pesca e da maricultura não somente na Baía Norte, mas no litoral de cidades da região metropolitana. Essa marina com certeza vai elevar o valor dos imóveis justamente na região mais cara da cidade, a Beira Mar. Enquanto isso, os bairros mais empobrecidos continuam à míngua.
Todos os seres viventes são diretamente atingidos por estas políticas urbanas ecocidas, que destroem plantas, animais, pessoas, rios e lagoas. O maior crime ambiental da nossa história, anunciado por técnicos da UFSC e coletivos ambientalistas, aconteceu este ano na Lagoa da Conceição, com o rompimento de uma represa de infiltração destinada à contenção de efluentes do tratamento de esgoto. A (ir)responsabilidade pelas centenas de animais morrendo asfixiados – em um triste paralelo com o cenário pandêmico que vivemos –, além de todas as dezenas de famílias atingidas é da CASAN e da Prefeitura (que contrata as concessionárias). A comunidade que teve sua vidas afetada segue em luta pela reparação integral de seus direitos e pela participação no processo.
Também é preciso lembrar do povo que vive nas periferias e que, por falta de uma política habitacional, reside precariamente em morros e áreas de risco, com um nítido recorte racial, sofrendo com as fortes chuvas, como é o caso de Ana Cristina Martins Lopes e sua filha Letícia Lopes Machado, que perderam suas vidas em um deslizamento de terra no bairro Saco Grande no início deste ano.
2. Nossos objetivos
“(…) Minha ilha não quer ser Miami. Não quer abrigar esse turismo predatório que transforma tudo numa mesma coisa em troca do dinheiro fácil e rápido. Minha ilha quer continuar sendo diversa e variada, alegre e colorida.”
– Trecho do Poema “Minha Ilha?” de Fernando Alexandre
O que nos move é a clareza de que estamos rumo a um colapso acelerado pelo capitalismo. Urge interromper esta política de destruição em nome de um progresso, que nada mais é do que uma ilusão, pois seus frutos ficam nas mãos de poucos e matam a própria árvore que os originou.
Esta (re/in)sistência por outras visões de mundo não começa hoje. A Grande Florianópolis como um todo tem um longo histórico de lutas ambientais e pelo direito à cidade: do Movimento Ecológico Livre (MEL) e da luta pela Ponta do Coral 100% pública, nos anos 80, das diversas ativistas e associações de bairro que batalharam por planos diretores mais justos, dos movimentos de luta por moradia, das revoltas da catraca pelo passe livre, à luta indígena no Morro dos Cavalos e pela Casa de Passagem e à luta contra a mineração em Anitápolis, apenas para citar alguns casos simbólicos. Estas lutas tiveram conquistas significativas, como unidades de conservação, a reserva biológica da Lagoa do Peri, o Parque da Luz, as moradias no Monte Cristo e a não construção do estaleiro da OSX em Biguaçu da fosfateira em Anitapólis e de qualquer empreendimento na Ponta do Coral. Portanto, compreendemos que é a mobilização popular o principal vetor de mudança na sociedade.
Entendemos que os movimentos, grupos e pessoas que atuam em prol das questões socioambientais precisam agir de forma coordenada para que nossas ações sejam mais efetivas. Os adversários que enfrentamos são poderosos e contam com a mídia e parte das instituições do Estado em seu favor. A natureza geográfica da ilha, com suas comunidades e lutas muitas vezes desconectadas, nos impelem a pensar uma articulação em forma de rede, que faça circular a informação e que retroalimente as mobilizações em cada canto dos territórios físicos e cibernéticos.
Apresentamos aqui as catástrofes da ilha como um “susto” para sua vizinhança, para enxergar que cada canto desta Terra está interconectado e sofre as consequências dos descasos noutros cantos, assim como São Paulo ficou estupefata com a feia fumaça trazida das queimadas na Amazônia pelos rios voadores.
Mas não queremos apenas “apagar incêndios”. Precisamos resgatar um horizonte politico de transformação radical da sociedade. É urgente repensar de forma coletiva o uso dos territórios e o planejamento de nossas cidades. Portanto, no bojo destas articulações, queremos aprender umas com as outras, construindo, com maior solidez, modos de viver que sejam mais justos socialmente, ambientalmente e economicamente e que lancem base para uma melhor relação com os demais seres viventes.
3. Quem somos:
“Como rendas de bilro são sonhos,
Tecidos, transformados a cada dia.
Tecidos em fios possíveis, fios de realidade”.– Trecho do Poema Rendeira, de Zeni Bannitz
Esta rede está se tecendo, fio a fio. Novos movimentos, grupos e pessoas podem se juntar a ela, compartilhando deste horizonte comum de transformação social, em torno de pautas que se transversalizam, tendo como cerne as questões socioambientais.
Estamos construindo um espaço de apoio mútuo para trocar informações, formações,
experiências e, especialmente, organizar ações coletivas, seja no nível
judiciário, executivo, legislativo, mas, principalmente, nas ruas, com ação
direta e mobilização popular.
Nossa organização é incipiente e buscamos, através da construção coletiva, os caminhos para que ela seja efetiva, fraterna, horizontal e respeite a autonomia de cada grupo e suas individualidades.
Embora este novelo tenha começado a se desenrolar a partir de Florianópolis, acreditamos no potencial de que se espalhe para outros cantos, pois nossos sonhos, e também nossos pesadelos, não reconhecem divisões geográficas.
Este manifesto é vivo, assim como a nossa forma de organização, podendo ser alterado conforme as demandas e o debate.
Última versão em Outubro de 2021.