O Cavalo de Troia da revisão do Plano Diretor de Florianópolis

Publicado originalmente no blog Jornalismo e Cidade.

Enquanto a imprensa nacional e internacional exibia a desastrosa temporada de verão de Florianópolis, marcada por milhares de casos de diarreia provocada pelo norovírus (5.895 até 7 de fevereiro, noticiou a Folha de S. Paulo), o movimento popular da capital construía um documento inédito, apresentado segunda-feira (13) na Audiência Pública na Câmara de Vereadores de Florianópolis, para o Plano Diretor da capital. Foram três meses de trabalho de voluntários em meio aos feriados e festas de final de ano, com reuniões de 5 a 10 horas cada, para analisar 1) a atual lei do Plano Diretor, a 482/2014 e 2) o Projeto de Lei Complementar 1911/2022, que tramita na Câmara, construindo a partir deles um Substitutivo Global em defesa da cidade.

O documento é um marco histórico e, como era de se esperar, provocou rebuliço disfarçado de desdém entre a bancada governista que estava na audiência de segunda e também na mídia local. O colunista Fabio Gadotti, do ND, afirmou que a “narrativa minoritária” na audiência queria gerar uma “cortina de fumaça baseada em interesses ideológicos”. O discurso – esse sim ideológico – do colunista procura ocultar o fato de que o calhamaço produzido pelo movimento popular está longe de ser fumaça. É, na verdade, o documento que desvela em detalhes o terrível “presente” que o prefeito Topázio Neto e a Câmara pretendem dar à população de Florianópolis na semana de aniversário da capital, em março. A revisão do Plano Diretor proposta pela Prefeitura é um Cavalo de Troia que traz destruição das paisagens, das áreas verdes e dos mananciais em uma realidade na qual a gestão Gean/Topázio vem demolindo as estruturas de planejamento, de proteção e de fiscalização ambiental. É que o calendário proposto pelo presidente da Câmara, João Cobalchini (União Brasil), informa a mídia local, prevê a primeira votação em 20 de março – dentro das comemorações dos 350 anos da cidade – e a segunda e final na sessão de 24 de abril.

“CONTRAS” A FAVOR DA CIDADE

No dia 10, o mesmo colunista publicou uma nota intitulada “Contras” que é outra pérola de ideologia, afirmando que a proposta do movimento popular é uma “articulação minoritária”, “sem proposições claras e objetivas”, para “barrar qualquer mudança na lei”. Ele cita que as audiências públicas realizadas pelo município em 2022 teriam atraído 3.611 moradores presencialmente e 5.821 via internet, concluindo: “Nunca houve uma participação popular tão efetiva”.

Ao longo dos últimos 20 anos, nos embates em torno do Plano Diretor de Florianópolis, nas colunas aparecem, além da expressão “do contra”, muitas outras: “ecochatos”, “militantes”, “ideólogos da esquerda”, “ativistas da esquerda”, “turma do atraso”. A base ideológica dos ataques, calcada nos interesses dos grupos dominantes da capital, é a “vocação turística” de Florianópolis. A expressão foi largamente usada em uma campanha publicitária iniciada em outubro de 1991 e continuada em 1992, patrocinada pelos “Amigos de Florianópolis” – formada principalmente por empresários do ramo turístico – que acusavam grupos ecologistas e movimentos sociais de impedirem o desenvolvimento urbano da capital, explica o historiador Reinaldo Lindolfo no livro “Artífices do futuro: cultura política e a invenção do tempo presente de Florianópolis (1950-1980)” (Florianópolis: Insular, 2016).

Os colunistas de Florianópolis volta e meia desqualificam os críticos da devastação ambiental de Florianópolis como “ideólogos de esquerda”. Mas são eles que se utilizam, pela mídia local, dos mecanismos da ideologia. O conceito de ideologia em Marx é inseparável das características de inverter, naturalizar, ocultar e apresentar o particular como se fosse universal. Basta uma afirmação do colunista Fabio Gadotti para compreender como aparece a ideologia. Segundo ele, “nunca houve uma participação popular tão efetiva” como nas audiências públicas realizadas pelo município em 2022 para discutir a minuta do Plano Diretor. O que essa afirmação oculta? O fato de que a população, nas audiências, sugeriu, reclamou, denunciou, MAS ISSO SIMPLESMENTE FOI IGNORADO PELA PREFEITURA NO PLANO. Ou seja, a tal “participação popular” DE NADA ADIANTOU. Foi encenação para fazer de conta que a proposta da Prefeitura é “democrática”. Esse é um breve exemplo de como funciona a ideologia no discurso de colunistas do ND a mando da Prefeitura e dos grupos dominantes.

O Substitutivo Global do movimento popular, chamado por Gadotti de “cortina de fumaça” e “sem proposições claras e objetivas”, na verdade é um trabalho de mais de 300 páginas. Para chegar a ele, o rol de atividades teve 18 encontros presenciais, dos quais 2 eventos iniciais convocados pelo Fórum da Cidade e pelo Coletivo Tecendo Redes, que deram início ao processo; mais 5 reuniões do Grupo de Trabalho para organizar a discussão e, por fim, 11 eventos, incluindo o do dia 8 de fevereiro, no Plenarinho da Assembleia Legislativa, para apresentar os resultados do processo.

A correria foi grande por causa do calendário imposto pela Prefeitura e pela Câmara de Vereadores, que está realizando quatro audiências públicas faltando uma semana para o Carnaval. O movimento popular vem buscando mostrar à população os impactos da proposta da Prefeitura. Na segunda-feira, foi apresentado um desenho produzido pela arquiteta Arlis Buhl Peres (imagem abaixo) que ilustra, na Avenida Madre Benvenuta, no bairro Santa Mônica, a aplicação dos incentivos contidos ao longo dos artigos da proposta do Executivo. A região já sofre alagamentos há décadas. Pela verticalização bastante expressiva e acima do que está nas tabelas, é de se esperar grande impacto no sistema viário e no saneamento. Esse é um de inúmeros exemplos dos graves problemas que se avizinham. E é importante assinalar que a proposta da Prefeitura traz ilegalidades gritantes, mostrando que Florianópolis irá liderar uma pressão nacional para afrouxar a legislação ambiental federal (assunto de outro artigo), como ocorreu na mudança para pior do Código Florestal, que partiu de Santa Catarina.

Na audiência de segunda, o movimento popular teve apenas 10 minutos para apresentar sua proposta, e das inúmeras falas, restritas a 3 minutos, não se sabe o que será feito.

Esses são alguns pontos principais da proposta (confira o detalhamento diretamente no documento, indicado ao final do texto):

– Defesa do desenvolvimento ecologicamente sustentável contra a retórica vazia da “sustentabilidade” bradada pelos grupos dominantes, que defendem o  princípio da liberdade econômica acima de bem comum.

– Eliminação das cerca de 15 inconstitucionalidades da proposta da Prefeitura que ameaçam a natureza, como os topos de morros e as áreas alagáveis.

– Garantia de um percentual adequado de áreas de lazer nos novos empreendimentos.

– Criação de Áreas de Relevância Ambiental, reforçando as áreas de preservação protegidas por legislação federal.

– Eleição de representantes para o Conselho da Cidade diretamente nos distritos.

O Plano Diretor é a lei mais importante da cidade e mexe com o cotidiano de toda a população. Mas é um documento complexo e precisa ser bem explicado. Talvez a mais lamentável constatação é a seguinte: a maioria dos vereadores é incapaz de compreender as implicações do documento, indo a reboque do que exigem o prefeito e os grupos dominantes, interessados apenas no lucro. Parte deles pensa como intendente, com a cabeça na rua e no bairro, desconhecendo ou fingindo desconhecer, por outros interesses, a complexidade da cidade e as relações com o território. E mais: mesmo depois do terrível rompimento da estação de tratamento de esgoto da Casan na Lagoa da Conceição, em 2021, e do fiasco do saneamento nas praias na atual temporada, boa parte deles e delas são incapazes de escutar os alertas sobre os problemas ambientais que, se aprovado, o plano do Executivo irá causar, ainda mais com a crise climática. Ouvem, mas não escutam, e também uns até debocham das falas de representantes do movimento popular.

Nesta semana serão quatro audiências no âmbito das comissões da Câmara (segunda a quinta) e uma final no dia 13 de março. Mas para que servirão é um mistério. Naquele plenário da Câmara onde Cristo padece noite e dia pregado na cruz, só pude me lembrar de Mateus 7:6. Se o Plano Diretor da Prefeitura for aprovado, melhor colocar lá um ostentoso Cavalo de Tróia.

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A Proposta Popular para o Plano Diretor de Florianópolis está em https://planodiretor.libertar.org/s/planodiretorpopular/page/apresentacao

Ali aparecem 1) o Substitutivo Global; 2) o “Manifesto por um Plano Diretor Popular para a Florianópolis que Queremos” e 3) o Relatório das Atividades que formaram a proposta.

* Matéria no site argentino Página 12 sobre a contaminação das praias de Florianópolis. O La Nacion também publicou matéria: https://www.pagina12.com.ar/514999-alerta-por-una-epidemia-de-diarrea-en-florianopolis-un-desti

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