FANTÁSTICO, VIKINGS, URSOS E A COP 30

Republicando texto de Gert Schinke.

Na noite de 19/01/25 o ‘FANTÁSTICO’ da Rede Globo apresentou uma reportagem sobre os projetos de Trump, um dos quais o ‘blefe’ de comprar a Groenlândia. Surge a primeira pergunta: De quem compraria a mega-ilha? Dos groenlandeses ou da Dinamarca, da qual hoje é ‘território autônomo’? De início ela nos apresentou um cenário cheio de montanhas geladas, paisagens deslumbrantes em meio à aurora boreal e ursos fofinhos sobre blocos de gelo, mas também múmias milenares de inuits, o povo originário local, agora expostas na superfície no solo em face do degelo, fruto de derretimento da calota ártica em franca e irreversível aceleração.

Os inuits, nação indígena que conseguiu forjar uma tecnologia e estilo de vida que lhes propiciou a sobrevivência naquele clima totalmente hostil ao longo de milênios, foram representados por um líder local que se autointitula ‘o inimigo número um’ (até parece eu, o ‘ecochato número um’) dos dinamarqueses, ao denunciar governos anteriores da Dinamarca, que implementaram uma política de ‘contenção populacional’ do povo inuit distribuindo pílulas contraceptivas para impedir o aumento da população nativa, política discriminatória com propósito claramente político para garantir a dominação mais fácil sobre o mesmo, tal qual os ingleses fizeram com vários povos na Austrália, objeto de filmes sobre o tema. Tudo ‘buona gente’ essa turma da Europa, como se pode observar em mais esse vergonhoso capítulo, que em patropi tomou contornos muito piores com o genocídio pandêmico.

Séculos antes os vikings estabeleceram colônias na ilha, em trânsito para a América, até então vista como outra ilha, atribuindo a ela o nome ‘Groenlândia’ – terra verde (groen), mantendo com os inuits uma relação conflituosa, mas que sobreviveram a esta primeira ‘dominação imperialista’. Os vikings transmutaram-se posteriormente nos vários povos nórdicos, dentre os quais os dinamarqueses. Entre os séculos XV e XVIII, o então ‘Reino da Dinamarca’ simplesmente ‘apossou-se’ da Groenlândia, declarando-a com ‘sua colônia’, tal como fizeram todos os demais reinos europeus durante aquele período expansionista do capitalismo, o Brasil dos portugueses, etc, etc, lista extensa, num mundo visto e dominado sob a lógica dos europeus. Só em 1953 passou a fazer parte do território da Dinamarca, mas em 1979 passou a ter o status de ‘região autônoma’, que vigora até hoje. Um plesbicito realizado em 2008 garante a independência a qualquer momento quando lhes convier fazer, criando um novo país, projeto hoje na gaveta. Justo diante desse status é que Trump surfa com o blefe de “comprar” a Groenlândia e atiça setores locais em torno dessa ideia, aludindo a ‘enormes vantagens socioeconômicas’ que a população local teria com a “anexação” ao grande império ianque, na toada ‘América First’, o que também insinuou fazer com o Canadá. E como a reportagem mostrou, o cânone tem alguns adeptos locais, ainda que pagos para papagaiar a “cativante oferta” trumpista. De outra parte, o orçamento groenlandês depende 50% da Dinamarca, que aporta os recursos para oferecer uma vida de “primeiro mundo” aos apenas 57 mil habitantes locais, o equivalente à população do Distrito dos Ingleses, no norte da Ilha de SC, e quase metade deles vivendo na capital Nuuk.

Ao mencionar os interesses geopolíticos e econômicos em torno das passagens matírimas que se abrirão permanentemente em face do aquecimento global, a matéria termina “denunciando” a ‘inescrupulosa ganância de alguns bilionários’ interessados em explorar as riquezas que o degelo está revelando: gás, terras raras usadas pela TI, indústria armamentística e as big techs, além da ameaça aos ursos fofinhos, a exuberante natureza local e aos simpáticos inuits, é claro, agora espantados diante das múmias de seus ancestrais.

Trata-se de mais um caso no qual se revelam os mútuos interesses econômicos e geopolíticos em jogo, reunindo as potências econômicas e militares, virtualmente em posições antagônicas em disputa de influência e poder, em torno de uma ‘confraria ecocida global’ em face dos benefícios que o degelo do Ártico ensejará: a abertura de duas rotas marítimas que baratearão enormemente o transporte internacional, além de proporcionar maior facilidade de acesso aos ‘infinitos’ recursos contidos no solo groenlandês, em benefício direto para os EUA, a China e a Rússia, país que em anos passados se antecipou fincando marcos no fundo do Oceano Ártico procurando “delimitar sua fronteira litorânea norte”. Ainda que Trump venha a ‘sequestrar’ o Canal do Panamá ao ‘estilo cowboy’, como ameaça fazer, estas rotas acabariam por se firmar alternativas ainda muito melhores no futuro próximo, colocando o mercado europeu mais acessível à China, bem como para a Rússia, lhe oferecendo uma rota de escoamento do petróleo e gás mais barato ao ocidente, para desespero dos sheiks das arábias. E assim, mais petróleo e gás, na contramão do aquecimento global e de uma urgente transição energética, que o lobby das petroleiras não quer, como se viu…

Passagem Noroeste (rosa, norte das Américas, à esquerda) e a Passagem Nordeste (laranja, norte da Eurásia, à direita): rotas marítimas que ligam o Atlântico ao Pacífico através do Oceano Ártico.

Com esta megaoperação de ‘ecoplamento’ global em curso, porque a ‘confraria ecocida’, a tal ‘oligarquia dos bilionários inescrupulosos’ que a matéria mencionou, se interessaria em frear o aquecimento global? Até a Europa, que por vezes se mostra tão “combativa” ambientalmente, se beneficiaria com a abertura destas novas rotas, ao garantir combustível e quinquilharias chinesas mais baratas.

E quando se olha para Copenhagen, com seu estilo de vida dinamarquês, ‘top’ em desenvolvimento mundial, que a matéria também mencionou, evidencia-se que nenhum desses atores globais está realmente interessado em mudar o rumo do atual sistema de exploração, dominação e riqueza material proporcionado por ele, especialmente a Europa, cujo estilo de vida, tal como os EUA, se mostra inarredável: farra do consumismo e energia, e ceifando vidas de todos os tipos mundo afora. Dá para levar a sério o ‘circo’ que se desenha em torno da COP 30?

Porém, o pior “ensinamento” que a matéria produz, muito bem feita como todas que ostentam o ‘selo de qualidade globo’, é mistificar o papel dos tais ‘bilionários inescrupulosos’, atribuindo a uns poucos indivíduos a responsabilidade dos “eventuais malefícios socioambientais” advindos do aquecimento global, degelo das calotas polares e as consequências correlatas, quando, em verdade, é todo o sistema de produção e consumo global, o sistema capitalista, que está provocando o colapso ecológico planetário. Esta conclusão, obviamente, deve ‘não ser dita’ numa matéria produzida por quem é beneficiário do sistema, a Globo e toda mídia comercial local e do mundo, o que inclui as plataformas big techs internéticas, em absoluta sintonia com as elites internacionais e locais.

A pergunta é óbvia: Quais os atores sociais que restam estar realmente interessados em alterar o curso do sistema para frear o colapso ecológico planetário?

Não bastasse a dificuldade de citar tais atores, em patropi e na ‘ilha da magia’ ainda tem gente do campo popular, via de regra se apresentando como “de esquerda”, elogiando as ‘conferências municipais ambientais’ para tirar delegados à COP 30, onde virarão estrelas BBB, além de forjar outras do tipo ‘alternativas’ a estas fake palhaçadas, sem qualquer legitimidade política. Em entrevista na Globonews no telejornal de 18/02/25, para meu espanto Marina Silva conclamou a população a participar das tais ‘conferências oficiais preparatórias’ à COP 30, tais como a do ‘eco-Topázio & Cia, em sintonia com a meta de fazer dela mais um ‘circo’ regado a champanhe e caviar, como todas as anteriores. Insiste na tentativa de “arrancar” destas atuais elites governantes alguma alteração de rumo na governança global, quando todos estes atores eles estão interessados em manter o atual rumo das coisas, a despeito dos desastres ocorridos e os ‘anunciados’. Quem está no topo, auferindo benefícios da sua posição, pretenderá mudar?

Não seria melhor se somar aos indígenas americanos e do mundo todo para sitiar Belém e denunciar a palhaçada das elites globais, locais e seus aliados, e melar a festa deles? Disse um poeta: “Mude o sistema, não o clima”. Na prática: sabote o sistema o quanto puder, consuma menos, denuncie todo(a)s patifes, vote melhor e desconfie mais dos teus governantes e supostos representantes. E, caso for à COP 30, fique do lado de fora protestando e denunciando a farsa eco-geopolítica.

Gert Schinke, na “ilha da magia”, em 20/01/25

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *